PITTER LUCENA

Jornalista acreano radicado em Brasília

Minha foto
Nome:
Local: Brasília, Distrito Federal, Brazil
PageRank

terça-feira, novembro 04, 2008

DOS BARÕES AO EXTERMÍNIO

Sociólogo afirma que a violência e o crime organizado tornaram-se grandes negócios, inclusive para o Estado

Francisco Dandão

Se existe alguém neste país capaz de discorrer durante horas sobre violência e organização de grupos de extermínio, principalmente daqueles que agem na Baixada Fluminense, esse alguém se chama José Cláudio Souza Alves, 46, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Sua tese de doutorado, defendida em 1998, foi exatamente sobre esse tema. Com o título “Dos Barões ao Extermínio – Uma História da Violência na Baixada Fluminense”, logo virou livro, imprescindível para o cidadão que anseie entender a origem da violência que tomou de assalto o Rio de Janeiro (principalmente, mas não apenas), nos últimos anos.
De passagem por Rio Branco, para participar da I Semana de Extensão da Universidade Federal do Acre, onde falou sobre Extensão Universitária, Políticas Públicas e Ações Afirmativas, o professor José Cláudio não se esquivou de responder algumas perguntas sobre o assunto, ao mesmo tempo instigante e perigoso, que ele pesquisa há quinze anos.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Eu gostaria que você falasse, inicialmente, sobre a sua tese de doutorado... Sobre como é que surgiu a idéia de fazer um trabalho dessa natureza.

José Cláudio - Eu tinha uma militância já de algum tempo na Baixada Fluminense. Eu tenho uma trajetória de vida que me levou à Baixada. Eu sou de Vigário Geral, que é um bairro também muito violento. E quando eu fui para a USP, o meu projeto não era estudar a Baixada, mas sim a questão da esquerda no Rio de Janeiro. Na época, entretanto, caiu em minhas mãos um livro que me marcou muito, de um autor chamado Mike Davis, um dublê de urbanista e caminhoneiro. Esse cara tem um livro chamado “Cidade de Quartzo”, que faz um retrato da cidade de Los Angeles, a partir da forma como o poder foi se organizando no local, ao mesmo tempo em que mostra como esse poder se consolida, através de várias estratégias. E foi aí que eu pensei em fazer alguma coisa semelhante com relação à Baixada Fluminense, um local onde se registram os mais altos índices de violência do mundo: são cerca de 80 homicídios anuais para cada cem mil habitantes. Ou seja, um padrão superior a qualquer região onde exista uma guerra. A ONU classifica 50 assassinatos por cem mil habitantes como situação de guerra. Foi a partir dessas constatações que eu pensei que não era possível chegar a um padrão de violência desse patamar se não fosse por conta de algum tipo de construção. E aí, então, ficou muito forte dentro de mim o desejo de proceder a uma investigação acadêmica para compreender melhor o fenômeno. Essa seqüência de fatores é que culminaram na tese.

E no que diz respeito aos riscos que você correu para realizar a pesquisa... Fale um pouco sobre isso.

José Cláudio - A pesquisa traz riscos naturais, por conta de você estar no campo procurando informações. No meu caso, eu fiz muito trabalho em arquivos de jornais e peguei também o precioso arquivo de um bispo, já falecido, D. Adriano Hipólito, que era um homem corajoso, um homem que chegou a denunciar o Esquadrão da Morte. Por conta das denúncias dele, aliás, ele foi seqüestrado, pintado de vermelho e solto despido numa vila militar. Seqüestro que ele atribuía aos próprios militares. Mas ele nunca silenciou e, ao contrário, criou um vasto arquivo com matérias de jornais, o que foi primordial para o meu trabalho. Eu entrevistei o Hélio Luz, que foi titular da Delegacia de Homicídios da Baixada... Entrevistei também a Tânia Maria Salles Moreira, que foi a promotora que levou à condenação vários líderes de grupos de extermínio... Mas eu nunca sofri ameaças. É certo que as pessoas com quem eu tive contato demonstravam sempre muito medo do que poderia acontecer a mim e a minha família... Mas, o que eu penso é que o meu trabalho, apesar de levantar questões para a compreensão e o esclarecimento da situação da violência, principalmente na Baixada Fluminense, acaba não incomodando a eles. O controle deles sobre a população e muito grande, eles tem a máquina de recursos públicos e a maioria hoje nem é mais formada por matadores, agora todos tem outras trajetórias. Talvez eu corresse algum risco só se eu fosse testemunha de acusação de algum dos crimes praticados por alguém desses grupos. Por enquanto eu ainda não sofri nenhum tipo de ameaça.

O sociólogo Francisco de Oliveira, um dos membros da banca avaliadora, quando da defesa da sua tese, fez algumas críticas ao seu trabalho. Eu gostaria que você comentasse a pertinência ou o eventual despropósito dessas críticas.

José Cláudio - As críticas foram muito pertinentes. Francisco de Oliveira me coloca dentro de uma tradição teórica da sociologia. Ele percebe a originalidade do meu trabalho, percebe a idéia de uma lógica que vem, principalmente, de Karl Marx, cujo pressuposto é o de que o Estado é constituído essencialmente a partir da violência. Eu não fujo disso. Eu vou buscar a fonte da constituição desse Estado, desse poder, calcado na violência. O que ele, de fato, percebe são algumas impaciências da minha parte, no trato dessa temática. Por exemplo, no momento em que trato do Brizolismo como muito rigor e com muita dureza, Francisco de Oliveira diz que não se pode pedir comportamento muito diverso de quem está no poder, levando em conta a essência da constituição do Estado. O próprio Estado é o crime. Todos os que estão presos ou a maioria dos que são assassinados pertencem à ponta de baixo do iceberg. Não é possível, de fato, chegar ao topo da pirâmide, chegar naqueles que, realmente, controlam o crime. A violência e o crime organizado se tornaram grandes negócios, inclusive para o Estado. A crítica maior do avaliador foi a de que muitas vezes eu não demonstro tolerância com as ações de pessoas ou de grupos que detém ou fazem parte do sistema de poder. Críticas absolutamente pertinentes.

No seu entender, é possível ainda uma sociedade brasileira harmoniosa ou isso não passa de uma utopia de poetas românticos?

José Cláudio - O que mantém a gente vivo nesse mundo é acreditar que ainda é possível transformar essa realidade. É possível sim, mas eu creio que o trabalho de construção dessa sociedade harmoniosa é muito difícil e lento. Eu acho que vai demorar muito para a gente conseguir estruturar outro tipo de sociedade. A lógica de uma revolução, de uma mudança pelas bases, de uma mudança radical das classes que dominam esse país ainda está muito longe de acontecer. Nós não temos hoje uma conjuntura ou uma junção de fatos que nos levem a uma revolução. Hoje, o partido que eu ajudei a criar e ao qual eu dediquei vinte anos da minha vida, que é o Partido dos Trabalhadores, desde que o Governo Lula assumiu o poder, perdeu essa possibilidade transformadora. Ele se associou justamente a esses grupos políticos que dominam o país. Ele estabelece uma lógica de clientela, como é o caso da Bolsa-Família. Ele estabelece políticas compensatórias, clientelas assistencialistas, de um lado, e do outro lado ele mantém a lucratividade dos maiores setores econômicos desse país. O PT se vinculou a grupos políticos diretamente envolvidos com a violência, com o controle político desse país. O PT se associou a banqueiros e grupos econômicos que hoje ganham dez vezes o que é gasto com a Bolsa-Família, para atender 36 milhões de brasileiros. Dez vezes mais o que é gasto com esse programa é dado de lucratividade a banqueiros. Se houve aumento de empregos, foi por conta da grande fluidez do mercado mundial. Mercado esse que agora se encontra em plena crise. Por conta disso, o próprio governo já começa a falar em cortes dos programas sociais. É uma falácia, então, você manter uma estrutura de política social calcada num mercado que é altamente vulnerável. Então, o que eu percebo é que não temos hoje uma estrutura revolucionária. O Estado, que poderia ser um agente de consolidação de uma classe econômica desfavorecida, através de políticas sociais mais sólidas, simplesmente não o faz.

O repórter Carlos Dorneles deu o seguinte título a um dos seus livros: Deus é Inocente. A imprensa, não. No que se refere à violência no Brasil, quanto de culpa se pode creditar à mídia?

José Cláudio - Eu acho que a mídia trabalha numa dupla lógica: uma lógica de mercado e uma lógica de patrocínio. A lógica de mercado, com respeito a quem consome a matéria, qual o grupo social para o qual estou produzindo as minhas informações, qual o interesse desse grupo social, o que eu digo pra ele... É nesse sentido que existe essa mídia que perpetua o discurso das classes perigosas, dos grupos violentos, que perpetua a lógica da execução sumária como prática de segurança do Estado. A violência é um excelente produto para essa mídia, porque tem um público ávido em consumi-lo. As matérias são muito direcionadas para esse fim, para a espetacularização da informação, sendo que no final das contas o público acaba sabendo muito pouco do fato. Você vê esse caso da Eloá e do Lindemberg: é quase uma crônica de uma morte anunciada. A espetacularização de um drama, sem nenhum aprofundamento do caso. No fim das contas, o público não sabe nada de quem são aqueles personagens. A mídia praticamente apenas radiofonizou uma ação no momento presente. A mídia não faz o discurso do aprofundamento, da educação, da qualificação da informação. A mídia é quase uma vendedora imediata de um produto também imediato e vendável, que é a violência em tempo real. Por outro lado, essa mídia vive o segundo elemento, que é o seu patrocinador, que são os grupos políticos e econômicos que querem perpetuar as suas imagens. Isso tudo é muito lamentável!

Dostoievski teria alguma possibilidade de sucesso se vivesse no Brasil do século XXI e tentasse publicar uma versão pós-moderna de Crime e Castigo?

José Cláudio - Crime e castigo... Quem são os criminosos e quem são os castigáveis nesse país? Nunca se chegará aos grandes empresários, grandes comerciantes e grandes banqueiros que financiam as grandes partidas de cocaína, assim como não se chegará àqueles que fazem tráfico de armas pesadas nesse país. Por que é que entra um “caveirão” blindado numa favela? A alegação é porque lá existem armas de grosso calibre. Essa justificativa é só para os governos subirem e matarem dezenas de pessoas a cada semana. Só que quando eles resgatam essas armas, dias depois essas mesmas armas estão de volta nas mãos dos traficantes. O problema é que quem vende essas armas para os traficantes é a própria polícia. Então, crime e castigo é exatamente o que nós temos nesse país. Só que são duas lógicas separadas: os criminosos vão muito bem, obrigado, perpetuados na sua ação assassina e na sua política genocida; e, do outro lado, aqueles que são os executáveis. O castigo recai exatamente sobre as vítimas desse sistema. Alguns autores que se debruçaram sobre esse tema da violência dizem que é uma espécie de profecia autocumprida. Ao tempo em que você lê a profecia, ela vai se cumprir porque você passa a fazer parte dela. No Brasil é exatamente essa a contradição que temos por aí.

Em se tratando de violência, meu caro José Cláudio, é possível se afirmar que Deus e o diabo andam de mãos dadas, em perfeita sincronia, na terra do sol?

José Cláudio - Deus e o diabo são associados. É claro que se tem que ver quem é esse deus e quem é esse diabo. Na literatura alemã existe um livro belíssimo do Franz Neum, chamado Behemot, que é a história do nazismo. Esse Behemot é um deus que se alimentava de sacrifícios humanos. Eu acho que no Brasil o Behemot é o Estado, a classe dominante... Esse é o deus que é cultuado aqui, sem nós sabermos. Ele se alimenta de sacrifícios humanos. Milhares de pessoas são sacrificadas nesse país, executadas sumariamente aos pés desse deus. O diabo nada mais é do que o seu irmão gêmeo, siamês, que está também perpetuando o mal, através da sua lógica mais perversa, a lógica da separação. Não tem coisa pior nesse país do que essa prática da violência, que separa o povo todo, de fora a fora, de cabo a rabo: separa os pobres dos pobres, separa os pobres trabalhadores dos pobres depois chamados de bandidos, separa a classe média das classes populares, separa a elite do que ela quer separar também... É tudo extremamente fragmentado. O Partido dos Trabalhadores, nesse sentido, deveria ser um partido que unificasse todos esses segmentos, mas, ao contrário, ele acaba sendo mais um fragmento que bebe dessa água. O diabo, então, é a separação do país. Se deus é Behemot, que se alimenta da carne dos pobres, o diabo é a entidade que está fragmentando cada um desses grupos sociais e que impede qualquer manifestação conjunta que possa derrubar toda essa estrutura de poder.

Por último, dado todo o seu conhecimento sobre essa questão da violência no nosso país, eu gostaria que você respondesse se ainda é possível amar o Brasil ou se nós temos que deixá-lo o mais rápido possível...

José Cláudio - Há algum tempo eu comecei a desenvolver uma síndrome. Nenhum médico descobria, exatamente, o que era que eu tinha. Até que um dia foi descoberto que o meu mal estava ligado à depressão. Tudo por conta de que, ao longo do tempo, todas as denúncias que eu fazia no livro se configuravam vãs. Ao contrário de terminar, toda a estrutura das mazelas que eu denunciei se fortalecia. Então, como eu era uma pessoa que esperava que o Brasil mudasse, fui percebendo que as minhas alternativas eram cada vez menores. Eu fui definhando e achei que já não havia mais sentido viver aqui nesse país. Chegou um momento em que eu perdi o sentido de caminhar entre os humanos. Eu estava querendo viver uma outra realidade. Porém, graças a Deus, eu hoje curei essa doença. E eu penso que comecei a me curar quando eu comecei a prestar atenção em pessoas totalmente arrebentadas pelo sistema brasileiro, mas que eu podia ver que dentro delas ainda restava muito de alegria e esperança. Dá pra perceber que essa gente consegue construir algo, e que apesar de a gente não saber como, o certo é que eles constroem esse algo. Penso que foi isso que eu consegui perceber: uma dimensão subjetiva, espiritual, da qual eu comecei a me alimentar também. Eu poderia dizer que construí a minha possibilidade de sobrevivência dessa esperança que vem da população mais pobre, vitimizada e vilipendiada pelo Estado brasileiro. Então, mesmo que não seja possível amar, pelo menos se pode permanecer, sim, nesse país. “A escuridão me ilumina, hoje eu sou poeta”. Isso é Manoel de Barros. Agora falando eu mesmo: a sujeira me limpa nesse país.

FOTOS PITTER LUCENA